ADEUS, CINE INTERNACIONAL: SOBRE MEMÓRIAS DIFUSAS E TSAI MING-LIANG
O ciclo Imaginação de Cinema! Que aconteceu entre 16 de março e 11 de maio, mirou por registrar as investigações das condições particulares de se fazer e ver cinema, se debruçando sob os instrumentos e simbologias narrativas que apresentam a variedade rica de imaginários sobre si próprio que o cinema atingiu nos filmes que integraram a mostra. Entre os mencionados está Goodbye, Dragon Inn, de Tsai Ming Liang, o tema desse texto de finalização à programação preparado por João Pedro Fiorin, integrante do cineclube. A sessão do filme ocorreu no dia 30 de março.
Quando eu era criança eu tinha medo de ir ao cinema. Não sei ao certo se era devido ao tamanho da tela, muito maior do que minha mente infantil de uma criança do interior era capaz de compreender, o volume do som (que fazia meus ossos tremerem) ou o escuro do ambiente. Provavelmente uma junção de todos esses fatores. Eu cresci em Sant’Ana do Livramento, uma pequena cidade interiorana do Rio Grande do Sul que faz fronteira com o Uruguai. Foi nessa cidade que meu amor por filmes nasceu, graças ao hábito de meus pais em ir à uma das muitas locadoras (lembra delas?) toda semana, sempre às sextas-feiras, para pegar pelo menos dois DVDs para assistirmos juntos. Assim fui introduzido a muitos clássicos do tempo deles, assim como os “lançamentos” daqueles calmos primeiros anos da primeira década do século (e aspas são apropriadas nesse caso, pois acho que levava quase um ano para que tivéssemos acesso a eles depois que saíam do circuito de salas de cinema) – no conforto da minha casa, em uma pequena tela de televisão. Isso não significa que não havia cinema na cidade. Havia um: o Cine Internacional.
O Internacional era um velho prédio em frente a uma praça. Acho que uma de minhas memórias mais antigas é de ter visto Homem-Aranha 2 lá. Eu deveria ter uns três anos na época. O engraçado é que nessa época eu ainda não tinha medo do cinema. Acho que era muito novo pra entender o que me assustava. Não sei quando essa fobia surgiu, mas deve ter sido pouco depois. Lembro que já na pré-escola evitava assistir filmes lá, mesmo quando o que estava passando me interessava. Hoje, olhando para trás, acho que faz sentido – afinal, magia pode ser algo aterrorizante, especialmente para uma criança. E, para essa criança que até os dez anos ainda se encantava com o conceito de uma escada-rolante (sim, a cidade era pequena nesse nível), a experiência de ir ao cinema só pode ser descrita como mágica. A questão é que, não muitos anos depois de eu parar de visitar o Internacional, o estabelecimento fechou suas portas. Eu me mudei, deixando aqueles anos para trás, e as memórias desse local ficaram trancadas em um local escuro por muitos e muitos anos. Isto é, até eu ver Adeus, Dragon Inn este ano – um dos filmes que fez parte da mostra Imaginação de Cinema aqui no Cineclube Sganzerla.
O filme de Tsai Ming-Liang é um recorte da última sessão de um cinema de bairro em Taipei - uma projeção do filme de artes-marciais Dragon Inn, que dá nome a obra - em uma noite de chuva profundamente silenciosa. Nessa última exibição, o público é composto por pouco mais do que fantasmas; sombras que vieram se despedir do local que individualmente marcou suas trajetórias. Os momentos se alongam, e nós também somos convidados a participar desse momento soturno de reflexão. Esse convite, entretanto, teve um impacto inesperadamente profundo em mim. É sobre essa experiência, e não necessariamente sobre o filme em si, que quero discorrer sobre. Em parte, porque acho que é uma obra melhor apreciada quando pouco se sabe sobre seu conteúdo, mas também pois acredito que palavras são incapazes de fazer justiça ao filme. Sua maior força, afinal, está no silêncio. É cinema-poesia em sua forma mais potente. Mas enfim, estou divagando. De volta ao dia da sessão.
Enquanto estava sentado na sala de projeção me vi subitamente transportado para a escadaria do Cine Internacional. Na verdade, já com 22 anos, havia me esquecido completamente que havia uma escadaria. Bom, escadaria é uma palavra um tanto suntuosa para descrever a realidade. Para se chegar ao cinema, era necessário subir por uma estreita escada de metal que subia lateralmente ao prédio. Essa escada, além de estreita, era extremamente longa (ao menos parecia. Talvez eu simplesmente fosse pequeno). E lá estava eu, mais uma vez com quatro ou cinco anos, atravessando essa escada em um dia de chuva. O som das gotas caindo sobre a superfície metálica ecoava em minha mente. Plic, Plac. Plic, Plac. Eu provavelmente não visitava essa memória a pelo menos dez anos. Ousei ir além, e entrei no saguão. Era um espaço simples, com poucos posters que anunciavam a programação da semana e alguns lançamentos futuros (acho que havia um de algum Harry Potter. A linha do tempo bate). Ainda era possível ouvir o som da chuva pesada contra o metal do lado de fora. Segui adiante, e entrei na sala de cinema.
Não sei qual filme estava passando. Não sei se isso importa, sinceramente. Poderia ser qualquer um dos filmes que sei ter visto naquela sala. O que importa é a sensação de ter adentrado esse local pela primeira vez em mais de 15 anos. Senti o calor abafado (não havia ar-condicionado lá), o suave cheiro de mofo que faz lembrar a casa de um velho parente, o som de pessoas mastigando pipoca e, mais ao fundo, do projetor em película. Ao meu lado eu podia sentir a presença do meu eu de dois anos de idade, que antecipava ver um filme na sala de cinema pela primeira vez. Naquela sala de cinema. Todas essas memórias e sentimentos que tomaram conta de mim duraram apenas alguns segundos, e novamente me encontrei na sessão do cineclube, assistindo a obra de Tsai Ming-Ling. Percebi que, ao contrário dos personagens de Adeus, Dragon Inn, nunca tive a oportunidade de me despedir daquele cinema de bairro que esteve presente na minha infância. Eu não dava valor para essas coisas na época. Era muito novo pra isso. Senti meus olhos marejarem.
Desde esse dia, tentei encontrar registros sobre o velho cinema da minha cidade e cheguei à conclusão aterradora de que existem pouquíssimos, ao menos na internet. Apenas uma menção de sua inauguração em 1957 em um blog, com uma fotografia de uma de suas salas anexada, sem fonte. Não há nem mesmo imagens de sua fachada na época em que estava em funcionamento. Essa realização foi ainda mais devastadora para mim do que quando recebi a notícia de que o local estava encerrando as atividades em definitivo, em meados de 2014. Afinal, o Cine Internacional não apenas fechou, como também fora esquecido. Em poucos anos, não haverá ninguém que saiba que naquele local havia um cinema, por um longo tempo o único cinema de Livramento, ao menos não sem revirar os arquivos da biblioteca pública da cidade. Eu mesmo sou culpado disso, uma vez que me esqueci de sua existência por quase metade de minha vida.
Agora, estou em Florianópolis, a quase mil quilômetros de minha cidade natal, quase uma década desde que o cinema de minha infância encerrou sua última projeção. Não sei qual filme foi exibido. Provavelmente nunca vou saber. Escrevo este texto em uma última tentativa desesperada de- preservar minhas memórias recentemente redescobertas, antes que elas se esvaiam como névoa, assim como deixar para trás uma prova, por menor que seja, da existência desse local que foi tão importante para os meus primeiros anos. Não pude me despedir dele pessoalmente, e agora percebo que tenho inveja do público que esteve presente na sessão de Dragon Inn naquele solitário cinema de Taipei. Faço deste texto, portanto, minha despedida.